CORRETORES DE CORPOS DEIXAM TRILHA DE QUESTÕES E CORRUPÇÃO.
DO CONSÓRCIO INTERNACIONAL DE JORNALISTAS INVESTIGATIVOS *
Em abril de 2003, Robert Ambrosino assassinou sua ex-noiva
--uma aspirante a atriz de 22 anos-- atirando no seu rosto com uma pistola.
Então Ambrosino virou a arma para si e se matou.
Em seguida, o cadáver de Ambrosino entrou no vasto sistema
de doação de tecidos dos Estados Unidos. Pele, ossos e outras partes do seu corpo
foram destinados para uso na fabricação de produtos médicos de ponta.
Antes de entrar no sistema, Michael Mastromarino, dono de
uma empresa de coleta de tecidos de Nova Jersey, precisou resolver alguns
problemas.
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Michael Mastromarino confessou a realização de um esquema para vender cadáveres. |
Ele não queria registrar que Ambrosino morreu num
assassinato seguido de suicídio. E não queria que alguém soubesse que a família
Ambrosino não havia permitido que o corpo fosse usado para a doação de tecidos.
Mastromarino resolveu os dois problemas da mesma maneira:
mentindo.
Ele alegou que Ambrosino morreu num acidente de carro e que
sua família havia concordado em doar seus tecidos antes de cremar seus restos
mortais.
Mastromarino era o líder de uma hoje famosa quadrilha de
tráfico de tecidos humanos que abasteceu o negócio internacional de partes de
corpos. Além dos tecidos do cadáver de Ambrosino, ele roubou partes de avós,
engenheiros e trabalhadores de fábrica, bem como os restos do famoso jornalista
Alistair Cooke, da BBC.
O cirurgião-dentista renegado do Brooklyn forneceu a matéria-prima
para produtos usados numa série de intervenções cirúrgicas -- desde reparação
de joelho até cirurgia plástica e implantes cosméticos. Ele estava na base de
uma indústria que lucra recolhendo tecidos humanos principalmente nos Estados
Unidos, mas também na Eslováquia, Estônia, México e outros países ao redor do
mundo.
Um dos principais compradores de Mastromarino era a RTI
Biologics, que processa partes de corpos obtidos nos EUA, no Canadá e na
Ucrânia e negocia suas ações na Bolsa de empresas de alta tecnologia Nasdaq.
Anos depois de Mastromarino ser enviado para a prisão e seu
caso passar a gerar menos assunto, sua história ganhou nova vida num processo
aberto em um tribunal de Staten Island.
Joseph J. Maltese, juiz do Supremo Tribunal de Nova York,
deu sinal verde para que a RTI seja julgada em 22 de outubro, num processo
civil sobre o que a empresa sabia --ou deveria saber-- sobre os vilipêndios a
cadáveres praticados por Mastromarino.
Provas apresentadas em tribunal levantam questões sobre se a
RTI foi vítima de uma fraude de Mastromarino ou se deixou de lado o bom senso
para lucrar mais.
Uma investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas
Investigativos (ICIJ) mostra que as evidências desse caso --e de outros
escândalos de roubo de órgãos ao redor do mundo-- põem em questão a conduta de
uma indústria que recicla mais de 30 mil cadáveres por ano.
A polícia de países como a Hungria e a Ucrânia, além dos
Estados da Carolina do Norte e do Alabama, nos EUA, afirma que os fornecedores
roubavam tecidos, cometiam fraude e falsificação de documentos ou enchiam os
bolsos de propina.
Esses casos sugerem que Michael Mastromarino não foi o único
negociador de órgãos que transgrediu as leis na ânsia de abastecer a indústria
de carne e osso.
UM PRODUTO FANTÁSTICO
Mastromarino, hoje com 49 anos, cumpre pena de até 58 anos numa prisão de
segurança máxima em Buffalo, NY. Ele se descreve mais como um corretor de
tecido humano do que um ladrão de cadáveres.
"Trata-se de um negócio. É uma commodity, como farinha
na Bolsa de Mercadorias. Não é diferente", disse Mastromarino. "Eu
dei um jeitinho, mas sabia onde podia cortar custos. Estávamos oferecendo um
produto fantástico."
Por cerca de três anos, até sua prisão em 2006, a empresa de
Mastromarino forneceu ossos e outros tecidos para a subsidiária sem fins
lucrativos da RTI, a Serviços de Doação RTI, e a quatro outras empresas
norte-americanas.
Mastromarino estava familiarizado com a operação da RTI
desde sua carreira anterior como um dos mais famosos dentistas de Manhattan.
Ele regularmente usava em seus pacientes produtos derivados de ossos de cadáver
e, por isso, assinou contrato de consultoria com a empresa em 2000 para ajudar
a refinar ainda mais os produtos da RTI.
A vida pessoal de Mastromarino, porém, vinha caindo aos
pedaços. Ele começou a usar analgésicos controlados injetáveis para aliviar um
velho ferimento de futebol, ficou viciado e foi preso por posse de drogas. Ele
tentou se internar em centros de reabilitação por três vezes antes de perder
seu credenciamento.
Familiarizado com a indústria e hábil no bisturi,
Mastromarino abriu sua própria empresa de recuperação de tecidos humanos.
Chamou-a Biomedical Tissue Services.
O processo foi fácil. Mastromarino preencheu um formulário
baixado do site da Food and Drug Administration, a agência que regula o setor
nos EUA.
Ele não precisou esperar para que o FDA inspecionasse suas
instalações. Passou a fornecer partes de corpos imediatamente --com ajuda mais
do que pequena, disse ele, de uma empresa vencedora, a Serviços de Doação RTI.
"A RTI armou para mim", afirmou Mastromarino em
testemunho no processo civil ainda em julgamento. Eles disseram: "Olha,
nós podemos entrar no seu negócio, nós podemos lhe ajudar a abrir seu próprio
negócio."
A LISTA DOS MENINOS MAUS DO PAPAI NOEL
As partes assinaram um contrato de fornecimento em março de 2002.
Pouco tempo depois, a linguagem colorida e o pavio curto de
Mastromarino atraíram queixas de funcionários da RTI. Havia também boatos sobre
seu suposto envolvimento com o crime organizado, de acordo com depoimento de
Caroline Hartill, vice-presidente de controle de qualidade da Serviços de
Doação RTI.
Documentos judiciais mostram que os executivos da RTI
estavam preocupados o suficiente para contratar um advogado que verificasse os
antecedentes de seu novo parceiro de negócios.
"Ele está na lista de meninos maus do Papai Noel há
algum tempo", escreveu o advogado Jerome Hoffman, em dezembro de 2002. "Eu
diria para não fazer negócios com alguém que tem esse tipo de currículo".
Poucas semanas depois, Hoffman aconselhou a RTI a dar a
Mastromarino "o protocolar aviso prévio de 60 dias nos termos do contrato
atual, sem assinar um novo contrato".
A RTI não acatou a sugestão do advogado.
Em vez disso, em 11 de fevereiro de 2003, Caroline Hartill
assinou um contrato diferente com a empresa de Mastromarino.
No novo contrato, o nome dele foi substituído pelo de um
médico calouro que morava em outro Estado e com quem Hartill nunca tinha
falado. O médico ficou como diretor médico da empresa de Mastromarino --ao
menos no papel.
Hartill testemunhou no processo civil que o contrato
alterado era só uma parte rotineira do credenciamento junto à Associação
Americana de Bancos de Tecidos, grupo ligado à indústria e que supervisiona
alguns dos maiores bancos de tecido dos EUA.
Segundo ela, sua empresa queria que o diretor médico tomasse
o lugar de Mastromarino no contrato porque a RTI "gostaria de ter uma
interação mais direta com alguns dos outros princípios fundamentais".
A RTI ignorou as preocupações do advogado, segundo ela,
porque, se Mastromarino tinha "arruinado sua vida, então quem sou eu para
julgá-lo?".
Mastromarino tem outra lembrança desses acontecimentos. Ele
testemunhou que Hartill e outro executivo da RTI telefonaram confidencialmente
para ele. Eles não queriam que concorrentes descobrissem sobre seu passado e o
usassem contra a empresa, eles disseram. E foi por isso, segundo Mastromarino,
que seu nome saiu do contrato.
"Ok, se for o que vocês querem pra ficar
confortáveis", disse-lhes Mastromarino, segundo depoimento no atual
processo cível.
A empresa recusou os pedidos de entrevista do ICIJ e não
respondeu a um questionário detalhado encaminhado mais de um mês atrás.
TAXAS RAZOÁVEIS
A RTI apela a depenadores de corpos por uma razão simples: ela precisa de
cadáveres para lucrar.
"Não podemos garantir que o fornecimento de tecido
humano continuará disponível nos níveis atuais ou que será suficiente para
satisfazer nossas necessidades", a RTI advertiu a seus acionistas em seus
relatórios à Comissão de Valores Mobiliários. "Nossas receitas devem cair
proporcionalmente à redução da oferta de tecido."
E ela não está sozinha.
Mais de 2.500 empresas registradas pelo governo dos EUA
dependem em graus variáveis das taxas que cobram para elaborar implantes feitos
a partir de tecido humano.
O maior banco de tecidos humanos do mundo, a Fundação de
Transplante Músculo-Esquelético (MTF), teve quase US$ 400 milhões em receitas
em 2010.
A MTF está registrada como uma organização sem fins
lucrativos e é isenta de impostos, como a maioria das organizações que coletam
tecidos de doadores localizados por hospitais, funerárias e necrotérios.
A maior parte das empresas de coleta fornece o material às
empresas de processamento como RTI, que limpa as peças e as transforma em
implantes utilizáveis. As empresas de processamento, por sua vez, distribuem
diretamente aos hospitais ou usam um fornecedor externo para enviar para o
resto do mundo, tais como a gigante de dispositivos médicos Zimmer.
As empresas disputam o acesso exclusivo aos doadores
norte-americanos. Por exemplo, a empresa de dispositivos médicos Bacterin
anunciou no ano passado que "obteve com sucesso os direitos primários
sobre o tecido humano de várias agências de recuperação".
A concorrência tem gerado amargas disputas judiciais. A MTF
processou a Bacterin no ano passado devido à contratação de ex-funcionários
que, segundo o processo, teriam usado informações privilegiadas para montar
produtos ósseos rivais para os clientes da MTF. "Os próprios fundamentos
da MTF como empresa estão sob ataque direto", argumentou a MTF em sua
denúncia.
A NuVasive, que negocia suas ações em Bolsa, processou a MTF
e sua parceira Orthofix, acusando-as de infringir uma patente de implantes
ósseos com células-tronco. E a LifeNet Health, sem fins lucrativos, processou
Zimmer pelo reembolso de tarifas de processamento de pinos ósseos.
A RTI obtém tecido diretamente através de sua subsidiária
sem fins lucrativos, a Serviços de Doação RTI, e também obteve o tecido de
outros bancos de tecidos sem fins lucrativos em pelo menos 23 Estados.
O Centro de Órgãos Alabama é um dos fornecedores da RTI. Ele
esteve envolvido num escândalo neste ano, quando seu segundo em comando,
Richard Alan Hicks, declarou-se culpado de aceitar subornos de uma casa
funerária em troca de contratos de recuperação de tecidos.
"Há brechas demais. Há muitas tentações. Há muito
dinheiro em jogo", disse o advogado de Hicks, Richard Jaffe, ao ICIJ em
junho. "Essa indústria está fora de controle".
O Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas em
San Antonio também recuperou tecidos para a RTI. Seu contrato inclui uma tabela
de tarifas -- dando preços diferentes para o mesmo tecido com base na idade do
doador. A RTI reembolsa o banco de tecidos em US$ 1.755 por um fêmur de 20 anos
de idade e US$ 553 pelo mesmo osso de um octogenário.
Em 1984, o Congresso americano aprovou a Lei Nacional do
Transplante de Órgãos, tornando ilegais a compra e a venda de órgãos e outros
tecidos humanos. Mas permitiu cobrar taxas "razoáveis" para a
recuperação, limpeza e distribuição dessas partes.
Tecidos mais jovens são mais fortes e podem ser mais
lucrativos para os processadores de tecido porque podem ser usados em enxertos
de maior valor. Nem a RTI e nem a Universidade do Texas responderam a repetidos
pedidos de esclarecimento sobre por que os mesmos tecidos teriam taxas tão
variadas.
O ICIJ procurou Christina Forte, advogada de instituições de
colheita de órgãos (OPO) e de bancos de tecidos, incluindo a gigante MTF. O
ICIJ perguntou se poderia haver outro motivo além da qualidade do tecido para
um banco pagar mais por tecidos jovens.
"Não encontrei uma resposta satisfatória", disse
ela, apontando para o contrato. "Não gosto disso. Eu diria ao meu OPO: não
assine isso".
ESTRITAMENTE CONFIDENCIAL
Com tanta concorrência pelos cadáveres americanos, algumas empresas buscam
matéria-prima no exterior. Isso criou um mercado fértil no Leste Europeu para
corretores de corpos e outros intermediários que podem ajudar a abastecer o
comércio de tecidos.
Um dos intermediários foi Igor Aleschenko, um médico legista
russo que trabalha na Ucrânia. Em coordenação com o Ministério da Saúde da
Ucrânia, ele criou a BioImplant, um centro estatal de coleta de tecidos que
fornece à Tutogen, uma empresa alemã de produtos médicos.
A Bioimplant fornece os tecidos à Tutogen. Mas os executivos
da Tutogen levantaram questões internas já em 2001 sobre se deveriam continuar
na Ucrânia, segundo um memorando interno marcado como "Estritamente
Confidencial!!!!"
Aleschenko pedia mais e mais dinheiro para fazer o papel de
intermediário entre os necrotérios regionais ao redor da Ucrânia e a Tutogen,
na Alemanha.
"O fluxo de dinheiro é difícil de controlar",
dizia o memorando. "O controle direto sobre nossos recursos é
impossível."
Ficar na Ucrânia seria um alto risco, determinaram os
autores.
"Não podemos controlar as atividades dos
intermediários, e os compromissos não vêm sendo honrados", dizia o
memorando.
Mas a relação não foi interrompida.
Com o tempo, 25 necrotérios ucranianos registraram, junto à
FDA, o número de telefone alemão da Tutogen como seu contato. Desde 2002, a
BioImplant e a Tutogen coletivamente exportaram para os Estados Unidos 1.307
cargas de tecido -- principalmente ossos, pele e fáscia enviados da Alemanha.
Famílias em Kiev começaram a reclamar à polícia em 2005 que
um necrotério fornecedor da Tutogen retirava tecido sem a devida autorização. O
processo criminal foi encerrado após a investigação inicial.
Os promotores determinaram que, nos termos da legislação
ucraniana, não poderiam provar que um crime havia sido cometido se não
provassem que o tecido havia sido transplantado para alguém, segundo os
registros judiciais.
Três anos depois, a polícia ucraniana investigou outro
fornecedor da Tutogen -- desta vez em Krivoy Rog. Essas acusações foram
retiradas depois que o diretor do necrotério morreu durante a tramitação do
julgamento criminal. Então, em fevereiro deste ano, a polícia deu uma batida no
necrotério Mykolaiv, no sul da Ucrânia.
Algumas famílias alegaram que foram enganadas, pressionadas
ou ameaçadas para dar autorização. A polícia disse que, em alguns casos, as
assinaturas haviam sido falsificadas.
Aleschenko teria fugido da Ucrânia para sua Rússia natal. O
Ministério não responde sobre seu paradeiro.
Roman Hitchev, o fundador de um grande banco de tecidos
búlgaro e hoje presidente eleito da Associação Europeia de Bancos de Tecidos,
disse ter sido convidado para a Ucrânia há alguns anos a pedido do governo
regional em Odessa. As autoridades queriam operar um banco semelhante ao dos
fornecedores da Tutogen em Kiev. Hitchev disse ter abandonado a reunião pouco
convencido.
"Eles não têm infraestrutura legal, faltam leis. A
regulação é insuficiente", disse ele. "Era tudo muito vago, muita
incerteza sobre quem seria responsável em termos de controle, rastreabilidade.
Não gostei do que vi e fui embora."
INSPEÇÕES LIMPAS
O mercado de corpos em ex-repúblicas soviéticas era tão atraente que até Michael
Mastromarino -- o dentista de Nova York que virou corretor de corpos -- tentou
entrar em ação no Quirguistão.
Ele tinha conexões no país. Voou para lá para encontrar um
alto funcionário da prisão. O funcionário pagou-lhe vinhos e jantares, disse Mastromarino,
e prometeu vender-lhe os corpos de prisioneiros executados.
Mastromarino foi para casa, eletrizado pelas perspectivas de
novos fluxos de matéria-prima e receita. Ele consultou a FDA sobre a importação
de tecidos do país.
A FDA ficou preocupada com o risco de que os tecidos
colhidos no Quirguistão pudessem estar contaminados pela doença de
Creutzfeldt-Jakob, uma doença neurológica fatal semelhante à doença da vaca
louca.
Deu a Mastromarino a resposta que ele não queria ouvir:
"Não".
Então, ele teve de se contentar com suas fontes domésticas
de corpos. Por algum tempo, tudo estava bem.
Nas auditorias da empresa de Mastromarino pelo FDA e pela
RTI, ninguém tentou verificar se as autorizações obtidas com as famílias dos
doadores eram legítimas. Muitas vezes elas indicavam ter sido obtidas por
telefone. A lei dos EUA exige que autorizações telefônicas sejam gravadas, mas
ninguém checou duas vezes para ver se ele realmente gravava --ou mesmo se as
obtinha.
Um júri da Pensilvânia, mais tarde, condenou o processo de
inspeção inteiro. "Se as mentiras nos registros diziam estar em
conformidade com os regulamentos, aparentemente era o bastante", dizia
relatório de 2007.
Enquanto a empresa de Mastromarino era aprovada nas
inspeções e dava lucro, pessoas de fora questionavam suas práticas de negócios.
Maryann Carroll, diretora da associação dos diretores de
funerárias de Nova Jersey, queixou-se à RTI de que Mastromarino procurava casas
funerárias usando papel timbrado da empresa.
"Maryann acredita que o reembolso é excessivo e ele dá
a impressão de estar comprando doadores", escreveu um funcionário da RTI
aos executivos, segundo correspondência sem data incluída nos registros do
tribunal. "Ela afirma que, se a imprensa ficar sabendo dessa história e
criticar a doação, a RTI será arrastada nisso e sua associação vai dizer que é
a segunda vez que fomos notificados e não fizemos nada."
O braço sem fins lucrativos da RTI, a Serviços de Doação,
assinou novo contrato com Mastromarino em junho de 2005.
Segundo a empresa disse mais tarde, na hora de assinar o
contrato a RTI não sabia que os investigadores criminais estavam de olho nas
operações de Mastromarino.
PIZZARIA
A RTI não era a única grande empresa querendo fazer negócios com Mastromarino.
Em agosto de 2005, a LifeCell Corporation, fornecedora de
enxertos de pele para queimaduras, cirurgias plásticas e de bexiga, entre
outros procedimentos, convidou Mastromarino a visitar sua sede em Nova Jersey.
Disse poder pagar cerca de US$ 10 mil por corpo se ele
pudesse fornecer a pele de pelo menos 400 doadores por ano, segundo uma cópia
da apresentação. Isso poderia render milhões de dólares por ano a Mastromarino.
Duas semanas depois de dar seu lance, a LifeCell recebeu uma
carta da promotoria do Brooklyn. A polícia de Nova York vinha investigando a
quadrilha de roubo de corpos de Mastromarino havia meses, após descobrir
autorizações forjadas numa funerária no Brooklyn. O promotor pediu que a
LifeCell fornecesse qualquer informação relativa à empresa de Mastromarino.
A LifeCell não respondeu a questões específicas enviadas
pelo ICIJ. Em comunicado, a empresa disse: "Foi o extensivo processo de
verificação de doadores feito pela LifeCell que detectou irregularidades com os
documentos de autorização da Biomedical Tissue Services, em setembro de
2005".
Em 28 de setembro -- três semanas depois que os promotores
pediram os registros da LifeCell-- o dr. Michael Bauer checou os gráficos de
doadores para a LifeCell. Ele sempre lidou com os doadores da empresa de Mastromarino.
Mas nunca tentou verificar as informações de forma independente. Ele não sabia,
segundo disse mais tarde, sobre o inquérito policial em curso, mas naquela
noite algo o compeliu a fazer o que nunca tinha feito antes. Tentou ligar para
o número de um dos médicos listados no arquivo de doadores.
O número era de uma pizzaria.
No escândalo que se seguiu, a LifeCell, a RTI, a Tutogen, a
Lost Mountain Tissue Bank e a Central Texas Blood and Tissue fizeram um recall
de 25 mil produtos -- 2.000 dos quais foram exportados para Austrália, Coreia
do Sul, Turquia, Suíça e outros países.
VIVA RÁPIDO, MORRA CEDO
O caso Mastromarino trouxe uma onda de má publicidade para o ramo. A atenção
indesejada voltou em agosto de 2006, quando surgiu um caso semelhante na
Carolina do Norte.
Phillip Guyett trabalhava na indústria de tecidos havia mais
de uma década, começando na Califórnia, em seguida ramificando-se para Nevada
e, eventualmente, Carolina do Norte.
Ao longo do caminho, Guyett descobriu que a melhor maneira
de encontrar cadáveres jovens e saudáveis, era visitando necrotérios municipais
e funerárias em regiões de baixa renda e altos índices de criminalidade ou
procurando cidades como Las Vegas, onde gente jovem faz bobagens e morre cedo.
Como Mastromarino, Guyett deu um jeitinho no processo de
venda de partes do corpo sendo criativo nos registros. Ele forjou informações
sobre arquivos de doadores e em um caso vendeu tecido infectado com hepatite
usando um frasco de sangue limpo de um cadáver diferente.
"É ridículo. Eu nunca deveria ter sido capaz de iniciar
um negócio de tecidos", disse ele ao ICIJ em entrevista na prisão.
"Eu enviei o formulário on-line e em três dias eu era
um banco oficial de recuperação de tecidos registrado na FDA", diz ele num
livro sobre a sua carreira. "É mais difícil vender um cachorro-quente na
rua do que obter tecidos para transplante."
Guyett declarou-se culpado de três acusações de fraude e
cumpre sentença de oito anos numa prisão federal.
Os casos de Mastromarino e de Guyett fizeram com que o
senador norte-americano Charles Schumer encaminhasse um projeto de lei para
ajudar a controlar a indústria de transformação de tecidos. O projeto exigia
que os novos bancos de tecidos atendessem a padrões mínimos de qualidade e
fossem submetidos a inspecções regulares pela FDA. Também exigia que o governo
federal definisse as "taxas razoáveis" -- uma mudança que, segundo
algumas empresas dizem aos seus acionistas, poderia comprometer receitas
futuras.
O projeto foi arquivado devido a um pesado lobby da
indústria, disse Schumer. "Eles disseram que não era necessário. Disseram
que "tudo está sob controle, mas eu tinha dúvidas", lembrou. "A
questão aqui é: o que vimos acontecer na funerária do Brooklyn poderia estar
acontecendo em muitos outros lugares, tanto aqui como no exterior, e não há
nenhuma proteção real."
Mastromarino concorda.
"Nada vai mudar", ele disse. "Muita gente
ganha muito dinheiro com isso."
APONTANDO O DEDO
Depois de se declarar culpado em julgamento para evitar uma possível sentença
de 8.673 anos na prisão, Mastromarino disse aos promotores que seus clientes --
RTI, Tutogen e LifeCell -- não foram simples vítimas de seus crimes. "Olhem
bem como a coisa funciona", disse ele.
Os promotores disseram que não encontraram evidências para
corroborar suas alegações. Mas as famílias dos mortos profanados vêm movendo
processos contra a RTI por negligência. "Não tanto exatamente pelo que
sabiam, mas pelo que deveriam saber", explicou um advogado dos demandantes
ao juiz durante a instrução do processo.
Se o processo chegar a ser julgado em outubro, como
previsto, a história de Mastromarino deverá virar peça central de prova para os
queixosos.
Tão importante, de fato, que os advogados da RTI Biologics
foram à Justiça para tentar excluir seu depoimento. Mastromarino já se declarou
culpado de fraudar a RTI e a Tutogen, disse a advogada Nancy Ledy-Gurren ao
juiz Maltese. Ele não pode mudar de lado e apontar o dedo para eles agora,
disse ela.
O juiz Maltese discordou.
"Você basicamente quer amordaçar Mastromarino para ele
não dizer qualquer coisa que envolva o que seus clientes lhe disseram -- esse
diálogo aumenta o espectro do o que eles sabiam, e quando souberam?",
disse o juiz aos advogados da empresa durante as audiências no ano passado.
Na opinião do juiz, o fato de que a promotoria nunca
processou os executivos das grandes empresas não significa necessariamente que
eles não "participaram da empreitada".
Pelo menos, disse o juiz, as famílias das vítimas têm o direito
de argumentar: "Eles deviam saber. Quer dizer, como eles poderiam ser tão
ingênuos?"
(KATE WILSON, VLAD LAVROV, MARTINA KELLER E MICHAEL HUDSON)
Colaboraram THOMAS MAIER e MAR CABRA.
Fonte: Folha de S.Paulo