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segunda-feira, 23 de julho de 2012

CORRETORES DE CORPOS HUMANOS


CORRETORES DE CORPOS DEIXAM TRILHA DE QUESTÕES E CORRUPÇÃO.

DO CONSÓRCIO INTERNACIONAL DE JORNALISTAS INVESTIGATIVOS *

Em abril de 2003, Robert Ambrosino assassinou sua ex-noiva --uma aspirante a atriz de 22 anos-- atirando no seu rosto com uma pistola. Então Ambrosino virou a arma para si e se matou.
Em seguida, o cadáver de Ambrosino entrou no vasto sistema de doação de tecidos dos Estados Unidos. Pele, ossos e outras partes do seu corpo foram destinados para uso na fabricação de produtos médicos de ponta.
Antes de entrar no sistema, Michael Mastromarino, dono de uma empresa de coleta de tecidos de Nova Jersey, precisou resolver alguns problemas. 

Michael Mastromarino confessou a realização de um esquema para vender cadáveres.

Ele não queria registrar que Ambrosino morreu num assassinato seguido de suicídio. E não queria que alguém soubesse que a família Ambrosino não havia permitido que o corpo fosse usado para a doação de tecidos.
Mastromarino resolveu os dois problemas da mesma maneira: mentindo.
Ele alegou que Ambrosino morreu num acidente de carro e que sua família havia concordado em doar seus tecidos antes de cremar seus restos mortais.
Mastromarino era o líder de uma hoje famosa quadrilha de tráfico de tecidos humanos que abasteceu o negócio internacional de partes de corpos. Além dos tecidos do cadáver de Ambrosino, ele roubou partes de avós, engenheiros e trabalhadores de fábrica, bem como os restos do famoso jornalista Alistair Cooke, da BBC.
O cirurgião-dentista renegado do Brooklyn forneceu a matéria-prima para produtos usados numa série de intervenções cirúrgicas -- desde reparação de joelho até cirurgia plástica e implantes cosméticos. Ele estava na base de uma indústria que lucra recolhendo tecidos humanos principalmente nos Estados Unidos, mas também na Eslováquia, Estônia, México e outros países ao redor do mundo.
Um dos principais compradores de Mastromarino era a RTI Biologics, que processa partes de corpos obtidos nos EUA, no Canadá e na Ucrânia e negocia suas ações na Bolsa de empresas de alta tecnologia Nasdaq.
Anos depois de Mastromarino ser enviado para a prisão e seu caso passar a gerar menos assunto, sua história ganhou nova vida num processo aberto em um tribunal de Staten Island.
Joseph J. Maltese, juiz do Supremo Tribunal de Nova York, deu sinal verde para que a RTI seja julgada em 22 de outubro, num processo civil sobre o que a empresa sabia --ou deveria saber-- sobre os vilipêndios a cadáveres praticados por Mastromarino.
Provas apresentadas em tribunal levantam questões sobre se a RTI foi vítima de uma fraude de Mastromarino ou se deixou de lado o bom senso para lucrar mais.
Uma investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) mostra que as evidências desse caso --e de outros escândalos de roubo de órgãos ao redor do mundo-- põem em questão a conduta de uma indústria que recicla mais de 30 mil cadáveres por ano.
A polícia de países como a Hungria e a Ucrânia, além dos Estados da Carolina do Norte e do Alabama, nos EUA, afirma que os fornecedores roubavam tecidos, cometiam fraude e falsificação de documentos ou enchiam os bolsos de propina.
Esses casos sugerem que Michael Mastromarino não foi o único negociador de órgãos que transgrediu as leis na ânsia de abastecer a indústria de carne e osso.

UM PRODUTO FANTÁSTICO

Mastromarino, hoje com 49 anos, cumpre pena de até 58 anos numa prisão de segurança máxima em Buffalo, NY. Ele se descreve mais como um corretor de tecido humano do que um ladrão de cadáveres.
"Trata-se de um negócio. É uma commodity, como farinha na Bolsa de Mercadorias. Não é diferente", disse Mastromarino. "Eu dei um jeitinho, mas sabia onde podia cortar custos. Estávamos oferecendo um produto fantástico."
Por cerca de três anos, até sua prisão em 2006, a empresa de Mastromarino forneceu ossos e outros tecidos para a subsidiária sem fins lucrativos da RTI, a Serviços de Doação RTI, e a quatro outras empresas norte-americanas.
Mastromarino estava familiarizado com a operação da RTI desde sua carreira anterior como um dos mais famosos dentistas de Manhattan. Ele regularmente usava em seus pacientes produtos derivados de ossos de cadáver e, por isso, assinou contrato de consultoria com a empresa em 2000 para ajudar a refinar ainda mais os produtos da RTI.
A vida pessoal de Mastromarino, porém, vinha caindo aos pedaços. Ele começou a usar analgésicos controlados injetáveis para aliviar um velho ferimento de futebol, ficou viciado e foi preso por posse de drogas. Ele tentou se internar em centros de reabilitação por três vezes antes de perder seu credenciamento.
Familiarizado com a indústria e hábil no bisturi, Mastromarino abriu sua própria empresa de recuperação de tecidos humanos. Chamou-a Biomedical Tissue Services.
O processo foi fácil. Mastromarino preencheu um formulário baixado do site da Food and Drug Administration, a agência que regula o setor nos EUA.
Ele não precisou esperar para que o FDA inspecionasse suas instalações. Passou a fornecer partes de corpos imediatamente --com ajuda mais do que pequena, disse ele, de uma empresa vencedora, a Serviços de Doação RTI.
"A RTI armou para mim", afirmou Mastromarino em testemunho no processo civil ainda em julgamento. Eles disseram: "Olha, nós podemos entrar no seu negócio, nós podemos lhe ajudar a abrir seu próprio negócio."
A LISTA DOS MENINOS MAUS DO PAPAI NOEL
As partes assinaram um contrato de fornecimento em março de 2002.
Pouco tempo depois, a linguagem colorida e o pavio curto de Mastromarino atraíram queixas de funcionários da RTI. Havia também boatos sobre seu suposto envolvimento com o crime organizado, de acordo com depoimento de Caroline Hartill, vice-presidente de controle de qualidade da Serviços de Doação RTI.
Documentos judiciais mostram que os executivos da RTI estavam preocupados o suficiente para contratar um advogado que verificasse os antecedentes de seu novo parceiro de negócios.
"Ele está na lista de meninos maus do Papai Noel há algum tempo", escreveu o advogado Jerome Hoffman, em dezembro de 2002. "Eu diria para não fazer negócios com alguém que tem esse tipo de currículo".
Poucas semanas depois, Hoffman aconselhou a RTI a dar a Mastromarino "o protocolar aviso prévio de 60 dias nos termos do contrato atual, sem assinar um novo contrato".
A RTI não acatou a sugestão do advogado.
Em vez disso, em 11 de fevereiro de 2003, Caroline Hartill assinou um contrato diferente com a empresa de Mastromarino.
No novo contrato, o nome dele foi substituído pelo de um médico calouro que morava em outro Estado e com quem Hartill nunca tinha falado. O médico ficou como diretor médico da empresa de Mastromarino --ao menos no papel.
Hartill testemunhou no processo civil que o contrato alterado era só uma parte rotineira do credenciamento junto à Associação Americana de Bancos de Tecidos, grupo ligado à indústria e que supervisiona alguns dos maiores bancos de tecido dos EUA.
Segundo ela, sua empresa queria que o diretor médico tomasse o lugar de Mastromarino no contrato porque a RTI "gostaria de ter uma interação mais direta com alguns dos outros princípios fundamentais".
A RTI ignorou as preocupações do advogado, segundo ela, porque, se Mastromarino tinha "arruinado sua vida, então quem sou eu para julgá-lo?".
Mastromarino tem outra lembrança desses acontecimentos. Ele testemunhou que Hartill e outro executivo da RTI telefonaram confidencialmente para ele. Eles não queriam que concorrentes descobrissem sobre seu passado e o usassem contra a empresa, eles disseram. E foi por isso, segundo Mastromarino, que seu nome saiu do contrato.
"Ok, se for o que vocês querem pra ficar confortáveis", disse-lhes Mastromarino, segundo depoimento no atual processo cível.
A empresa recusou os pedidos de entrevista do ICIJ e não respondeu a um questionário detalhado encaminhado mais de um mês atrás. 

TAXAS RAZOÁVEIS

A RTI apela a depenadores de corpos por uma razão simples: ela precisa de cadáveres para lucrar.
"Não podemos garantir que o fornecimento de tecido humano continuará disponível nos níveis atuais ou que será suficiente para satisfazer nossas necessidades", a RTI advertiu a seus acionistas em seus relatórios à Comissão de Valores Mobiliários. "Nossas receitas devem cair proporcionalmente à redução da oferta de tecido."
E ela não está sozinha.
Mais de 2.500 empresas registradas pelo governo dos EUA dependem em graus variáveis das taxas que cobram para elaborar implantes feitos a partir de tecido humano.
O maior banco de tecidos humanos do mundo, a Fundação de Transplante Músculo-Esquelético (MTF), teve quase US$ 400 milhões em receitas em 2010.
A MTF está registrada como uma organização sem fins lucrativos e é isenta de impostos, como a maioria das organizações que coletam tecidos de doadores localizados por hospitais, funerárias e necrotérios.
A maior parte das empresas de coleta fornece o material às empresas de processamento como RTI, que limpa as peças e as transforma em implantes utilizáveis. As empresas de processamento, por sua vez, distribuem diretamente aos hospitais ou usam um fornecedor externo para enviar para o resto do mundo, tais como a gigante de dispositivos médicos Zimmer.
As empresas disputam o acesso exclusivo aos doadores norte-americanos. Por exemplo, a empresa de dispositivos médicos Bacterin anunciou no ano passado que "obteve com sucesso os direitos primários sobre o tecido humano de várias agências de recuperação".
A concorrência tem gerado amargas disputas judiciais. A MTF processou a Bacterin no ano passado devido à contratação de ex-funcionários que, segundo o processo, teriam usado informações privilegiadas para montar produtos ósseos rivais para os clientes da MTF. "Os próprios fundamentos da MTF como empresa estão sob ataque direto", argumentou a MTF em sua denúncia.
A NuVasive, que negocia suas ações em Bolsa, processou a MTF e sua parceira Orthofix, acusando-as de infringir uma patente de implantes ósseos com células-tronco. E a LifeNet Health, sem fins lucrativos, processou Zimmer pelo reembolso de tarifas de processamento de pinos ósseos.
A RTI obtém tecido diretamente através de sua subsidiária sem fins lucrativos, a Serviços de Doação RTI, e também obteve o tecido de outros bancos de tecidos sem fins lucrativos em pelo menos 23 Estados.
O Centro de Órgãos Alabama é um dos fornecedores da RTI. Ele esteve envolvido num escândalo neste ano, quando seu segundo em comando, Richard Alan Hicks, declarou-se culpado de aceitar subornos de uma casa funerária em troca de contratos de recuperação de tecidos.
"Há brechas demais. Há muitas tentações. Há muito dinheiro em jogo", disse o advogado de Hicks, Richard Jaffe, ao ICIJ em junho. "Essa indústria está fora de controle".
O Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas em San Antonio também recuperou tecidos para a RTI. Seu contrato inclui uma tabela de tarifas -- dando preços diferentes para o mesmo tecido com base na idade do doador. A RTI reembolsa o banco de tecidos em US$ 1.755 por um fêmur de 20 anos de idade e US$ 553 pelo mesmo osso de um octogenário.
Em 1984, o Congresso americano aprovou a Lei Nacional do Transplante de Órgãos, tornando ilegais a compra e a venda de órgãos e outros tecidos humanos. Mas permitiu cobrar taxas "razoáveis" para a recuperação, limpeza e distribuição dessas partes.
Tecidos mais jovens são mais fortes e podem ser mais lucrativos para os processadores de tecido porque podem ser usados em enxertos de maior valor. Nem a RTI e nem a Universidade do Texas responderam a repetidos pedidos de esclarecimento sobre por que os mesmos tecidos teriam taxas tão variadas.
O ICIJ procurou Christina Forte, advogada de instituições de colheita de órgãos (OPO) e de bancos de tecidos, incluindo a gigante MTF. O ICIJ perguntou se poderia haver outro motivo além da qualidade do tecido para um banco pagar mais por tecidos jovens.
"Não encontrei uma resposta satisfatória", disse ela, apontando para o contrato. "Não gosto disso. Eu diria ao meu OPO: não assine isso".

ESTRITAMENTE CONFIDENCIAL

Com tanta concorrência pelos cadáveres americanos, algumas empresas buscam matéria-prima no exterior. Isso criou um mercado fértil no Leste Europeu para corretores de corpos e outros intermediários que podem ajudar a abastecer o comércio de tecidos.
Um dos intermediários foi Igor Aleschenko, um médico legista russo que trabalha na Ucrânia. Em coordenação com o Ministério da Saúde da Ucrânia, ele criou a BioImplant, um centro estatal de coleta de tecidos que fornece à Tutogen, uma empresa alemã de produtos médicos.
A Bioimplant fornece os tecidos à Tutogen. Mas os executivos da Tutogen levantaram questões internas já em 2001 sobre se deveriam continuar na Ucrânia, segundo um memorando interno marcado como "Estritamente Confidencial!!!!"
Aleschenko pedia mais e mais dinheiro para fazer o papel de intermediário entre os necrotérios regionais ao redor da Ucrânia e a Tutogen, na Alemanha.
"O fluxo de dinheiro é difícil de controlar", dizia o memorando. "O controle direto sobre nossos recursos é impossível."
Ficar na Ucrânia seria um alto risco, determinaram os autores.
"Não podemos controlar as atividades dos intermediários, e os compromissos não vêm sendo honrados", dizia o memorando.
Mas a relação não foi interrompida.
Com o tempo, 25 necrotérios ucranianos registraram, junto à FDA, o número de telefone alemão da Tutogen como seu contato. Desde 2002, a BioImplant e a Tutogen coletivamente exportaram para os Estados Unidos 1.307 cargas de tecido -- principalmente ossos, pele e fáscia enviados da Alemanha.
Famílias em Kiev começaram a reclamar à polícia em 2005 que um necrotério fornecedor da Tutogen retirava tecido sem a devida autorização. O processo criminal foi encerrado após a investigação inicial.
Os promotores determinaram que, nos termos da legislação ucraniana, não poderiam provar que um crime havia sido cometido se não provassem que o tecido havia sido transplantado para alguém, segundo os registros judiciais.
Três anos depois, a polícia ucraniana investigou outro fornecedor da Tutogen -- desta vez em Krivoy Rog. Essas acusações foram retiradas depois que o diretor do necrotério morreu durante a tramitação do julgamento criminal. Então, em fevereiro deste ano, a polícia deu uma batida no necrotério Mykolaiv, no sul da Ucrânia.
Algumas famílias alegaram que foram enganadas, pressionadas ou ameaçadas para dar autorização. A polícia disse que, em alguns casos, as assinaturas haviam sido falsificadas.
Aleschenko teria fugido da Ucrânia para sua Rússia natal. O Ministério não responde sobre seu paradeiro.
Roman Hitchev, o fundador de um grande banco de tecidos búlgaro e hoje presidente eleito da Associação Europeia de Bancos de Tecidos, disse ter sido convidado para a Ucrânia há alguns anos a pedido do governo regional em Odessa. As autoridades queriam operar um banco semelhante ao dos fornecedores da Tutogen em Kiev. Hitchev disse ter abandonado a reunião pouco convencido.
"Eles não têm infraestrutura legal, faltam leis. A regulação é insuficiente", disse ele. "Era tudo muito vago, muita incerteza sobre quem seria responsável em termos de controle, rastreabilidade. Não gostei do que vi e fui embora." 

INSPEÇÕES LIMPAS

O mercado de corpos em ex-repúblicas soviéticas era tão atraente que até Michael Mastromarino -- o dentista de Nova York que virou corretor de corpos -- tentou entrar em ação no Quirguistão.
Ele tinha conexões no país. Voou para lá para encontrar um alto funcionário da prisão. O funcionário pagou-lhe vinhos e jantares, disse Mastromarino, e prometeu vender-lhe os corpos de prisioneiros executados.
Mastromarino foi para casa, eletrizado pelas perspectivas de novos fluxos de matéria-prima e receita. Ele consultou a FDA sobre a importação de tecidos do país.
A FDA ficou preocupada com o risco de que os tecidos colhidos no Quirguistão pudessem estar contaminados pela doença de Creutzfeldt-Jakob, uma doença neurológica fatal semelhante à doença da vaca louca.
Deu a Mastromarino a resposta que ele não queria ouvir: "Não".
Então, ele teve de se contentar com suas fontes domésticas de corpos. Por algum tempo, tudo estava bem.
Nas auditorias da empresa de Mastromarino pelo FDA e pela RTI, ninguém tentou verificar se as autorizações obtidas com as famílias dos doadores eram legítimas. Muitas vezes elas indicavam ter sido obtidas por telefone. A lei dos EUA exige que autorizações telefônicas sejam gravadas, mas ninguém checou duas vezes para ver se ele realmente gravava --ou mesmo se as obtinha.
Um júri da Pensilvânia, mais tarde, condenou o processo de inspeção inteiro. "Se as mentiras nos registros diziam estar em conformidade com os regulamentos, aparentemente era o bastante", dizia relatório de 2007.
Enquanto a empresa de Mastromarino era aprovada nas inspeções e dava lucro, pessoas de fora questionavam suas práticas de negócios.
Maryann Carroll, diretora da associação dos diretores de funerárias de Nova Jersey, queixou-se à RTI de que Mastromarino procurava casas funerárias usando papel timbrado da empresa.
"Maryann acredita que o reembolso é excessivo e ele dá a impressão de estar comprando doadores", escreveu um funcionário da RTI aos executivos, segundo correspondência sem data incluída nos registros do tribunal. "Ela afirma que, se a imprensa ficar sabendo dessa história e criticar a doação, a RTI será arrastada nisso e sua associação vai dizer que é a segunda vez que fomos notificados e não fizemos nada."
O braço sem fins lucrativos da RTI, a Serviços de Doação, assinou novo contrato com Mastromarino em junho de 2005.
Segundo a empresa disse mais tarde, na hora de assinar o contrato a RTI não sabia que os investigadores criminais estavam de olho nas operações de Mastromarino. 

PIZZARIA

A RTI não era a única grande empresa querendo fazer negócios com Mastromarino.
Em agosto de 2005, a LifeCell Corporation, fornecedora de enxertos de pele para queimaduras, cirurgias plásticas e de bexiga, entre outros procedimentos, convidou Mastromarino a visitar sua sede em Nova Jersey.
Disse poder pagar cerca de US$ 10 mil por corpo se ele pudesse fornecer a pele de pelo menos 400 doadores por ano, segundo uma cópia da apresentação. Isso poderia render milhões de dólares por ano a Mastromarino.
Duas semanas depois de dar seu lance, a LifeCell recebeu uma carta da promotoria do Brooklyn. A polícia de Nova York vinha investigando a quadrilha de roubo de corpos de Mastromarino havia meses, após descobrir autorizações forjadas numa funerária no Brooklyn. O promotor pediu que a LifeCell fornecesse qualquer informação relativa à empresa de Mastromarino.
A LifeCell não respondeu a questões específicas enviadas pelo ICIJ. Em comunicado, a empresa disse: "Foi o extensivo processo de verificação de doadores feito pela LifeCell que detectou irregularidades com os documentos de autorização da Biomedical Tissue Services, em setembro de 2005".
Em 28 de setembro -- três semanas depois que os promotores pediram os registros da LifeCell-- o dr. Michael Bauer checou os gráficos de doadores para a LifeCell. Ele sempre lidou com os doadores da empresa de Mastromarino. Mas nunca tentou verificar as informações de forma independente. Ele não sabia, segundo disse mais tarde, sobre o inquérito policial em curso, mas naquela noite algo o compeliu a fazer o que nunca tinha feito antes. Tentou ligar para o número de um dos médicos listados no arquivo de doadores.
O número era de uma pizzaria.
No escândalo que se seguiu, a LifeCell, a RTI, a Tutogen, a Lost Mountain Tissue Bank e a Central Texas Blood and Tissue fizeram um recall de 25 mil produtos -- 2.000 dos quais foram exportados para Austrália, Coreia do Sul, Turquia, Suíça e outros países. 

VIVA RÁPIDO, MORRA CEDO

O caso Mastromarino trouxe uma onda de má publicidade para o ramo. A atenção indesejada voltou em agosto de 2006, quando surgiu um caso semelhante na Carolina do Norte.
Phillip Guyett trabalhava na indústria de tecidos havia mais de uma década, começando na Califórnia, em seguida ramificando-se para Nevada e, eventualmente, Carolina do Norte.
Ao longo do caminho, Guyett descobriu que a melhor maneira de encontrar cadáveres jovens e saudáveis, era visitando necrotérios municipais e funerárias em regiões de baixa renda e altos índices de criminalidade ou procurando cidades como Las Vegas, onde gente jovem faz bobagens e morre cedo.
Como Mastromarino, Guyett deu um jeitinho no processo de venda de partes do corpo sendo criativo nos registros. Ele forjou informações sobre arquivos de doadores e em um caso vendeu tecido infectado com hepatite usando um frasco de sangue limpo de um cadáver diferente.
"É ridículo. Eu nunca deveria ter sido capaz de iniciar um negócio de tecidos", disse ele ao ICIJ em entrevista na prisão.
"Eu enviei o formulário on-line e em três dias eu era um banco oficial de recuperação de tecidos registrado na FDA", diz ele num livro sobre a sua carreira. "É mais difícil vender um cachorro-quente na rua do que obter tecidos para transplante."
Guyett declarou-se culpado de três acusações de fraude e cumpre sentença de oito anos numa prisão federal.
Os casos de Mastromarino e de Guyett fizeram com que o senador norte-americano Charles Schumer encaminhasse um projeto de lei para ajudar a controlar a indústria de transformação de tecidos. O projeto exigia que os novos bancos de tecidos atendessem a padrões mínimos de qualidade e fossem submetidos a inspecções regulares pela FDA. Também exigia que o governo federal definisse as "taxas razoáveis" -- uma mudança que, segundo algumas empresas dizem aos seus acionistas, poderia comprometer receitas futuras.
O projeto foi arquivado devido a um pesado lobby da indústria, disse Schumer. "Eles disseram que não era necessário. Disseram que "tudo está sob controle, mas eu tinha dúvidas", lembrou. "A questão aqui é: o que vimos acontecer na funerária do Brooklyn poderia estar acontecendo em muitos outros lugares, tanto aqui como no exterior, e não há nenhuma proteção real."
Mastromarino concorda.
"Nada vai mudar", ele disse. "Muita gente ganha muito dinheiro com isso." 

APONTANDO O DEDO

Depois de se declarar culpado em julgamento para evitar uma possível sentença de 8.673 anos na prisão, Mastromarino disse aos promotores que seus clientes -- RTI, Tutogen e LifeCell -- não foram simples vítimas de seus crimes. "Olhem bem como a coisa funciona", disse ele.
Os promotores disseram que não encontraram evidências para corroborar suas alegações. Mas as famílias dos mortos profanados vêm movendo processos contra a RTI por negligência. "Não tanto exatamente pelo que sabiam, mas pelo que deveriam saber", explicou um advogado dos demandantes ao juiz durante a instrução do processo.
Se o processo chegar a ser julgado em outubro, como previsto, a história de Mastromarino deverá virar peça central de prova para os queixosos.
Tão importante, de fato, que os advogados da RTI Biologics foram à Justiça para tentar excluir seu depoimento. Mastromarino já se declarou culpado de fraudar a RTI e a Tutogen, disse a advogada Nancy Ledy-Gurren ao juiz Maltese. Ele não pode mudar de lado e apontar o dedo para eles agora, disse ela.
O juiz Maltese discordou.
"Você basicamente quer amordaçar Mastromarino para ele não dizer qualquer coisa que envolva o que seus clientes lhe disseram -- esse diálogo aumenta o espectro do o que eles sabiam, e quando souberam?", disse o juiz aos advogados da empresa durante as audiências no ano passado.
Na opinião do juiz, o fato de que a promotoria nunca processou os executivos das grandes empresas não significa necessariamente que eles não "participaram da empreitada".
Pelo menos, disse o juiz, as famílias das vítimas têm o direito de argumentar: "Eles deviam saber. Quer dizer, como eles poderiam ser tão ingênuos?" 

(KATE WILSON, VLAD LAVROV, MARTINA KELLER E MICHAEL HUDSON)
Colaboraram THOMAS MAIER e MAR CABRA. 

Fonte: Folha de S.Paulo

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