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quinta-feira, 7 de julho de 2011

A Morte na Família Daqueles que Trabalham com a Morte

“Sofro por ter derramado minha alma na areia

e por ter amado um mortal como

se ele não fosse morrer”

(Sto. Agostinho).

É condição humana reagir à morte, e, ao contrário do que possa supor a maioria das pessoas, nós que atuamos neste segmento não estamos imune a essa experiência, muito menos insensíveis para a morte daqueles que amamos e que fizeram parte da nossa família e de nossa história.

Certa vez, coordenando um grupo de apoio em um cemitério, uma senhora, admirada por nossa manifestação, relatou que imaginava que diante da morte de alguém muito querido, nós não teríamos dificuldade em lidar com o assunto e nem sofreríamos, porque, além de sermos psicólogas, trabalhamos no apoio ás famílias enlutadas. Ledo engano!

Em um curto período, nestes últimos tempos, perdemos de uma só vez um pai e uma quase irmã. Perdas irreparáveis e lutos em processo. Essa experiência vem confirmar a nossa própria condição de mortal e validar a complexidade desse processo de rompimento de vínculos afetivos.

Pudéssemos nós, “profissionais da morte”, ficar isentos da dor que ela provoca, mas isso não é possível e nem seria justo, porque o que nos resta de quem amamos, senão a saudade dos momentos vividos? Se a saudade nos atormenta, ela também nos alimenta na falta que sentimos de quem amamos.

Porque Não Conseguimos, Depois de Anos de Experiência, nos Tornar Dispensados da Dor da Perda?

Talvez por que a dor da perda está proporcionalmente equiparada ao quanto investimos no vinculo rompido. Ou talvez, ainda, por nos vermos obrigadas enquanto profissionais, a lidar com a dor do outro, e não com a nossa própria dor, o que, de certa forma, nos propicia uma boa organização, condução e orientação do trabalho.

O ser humano atua em dois importantes campos: um racional e um emocional. Estas duas instâncias se inter-seccionam o tempo todo em nossa vida. Em algumas situações a “porção” da razão é maior do que a da emoção, ou o contrário, mas o fato é que ambas andam sempre juntas em diferentes medidas, ou seja: não há razão sem emoção e não há emoção sem um mínimo de razão.

Para o trabalho com enlutados, em geral, fazemos uso, em maior escala, da razão. É ela que nos permite ouvir e que nos permite tomar decisões e/ou traçar orientações diante de uma pessoa em luto complicado ou em extrema tristeza pela morte de um familiar. Todavia, sabemos que em nossa vida familiar, nossas ações estão baseadas na emoção.

Quando o profissional que trabalha com a morte perde alguém, ele está entregue às emoções e a todas as mazelas que esse fenômeno imputa. A razão e objetividade ficam comprometidas nesta hora e as manifestações da dor, referentes a esse período, se fazem necessárias.

Todo ser humano que se vincula, é impactado por ocasião de um rompimento de laços afetivos. Até os animais reagem às perdas, quanto mais nós !

Deste modo, trabalhar com a morte pode supostamente dar a sensação de que estamos preparados para enfrentá-la adequadamente em nossa família.

O Que Aprendemos Quando Trabalhamos com a Morte?

1)Que todas as pessoas morrem

2)Que a morte provoca muita dor

3)Que as pessoas ficam vulneráveis e desorientadas diante da perda


Se usarmos estes saberes adequadamente, podemos tirar proveito do fato de trabalharmos com a morte:


1)Todas as pessoas morrem, inclusive nossos familiares, portanto devemos dar todo carinho e atenção que merecem sempre porque não sabemos quando partirão.

2)A morte provoca muita dor, portanto podemos nos dar o direito de chorar e sofrer quando ela chegar para alguém que amamos, ao invés de tentar sufocar a dor da saudade, como se tudo estivesse sob controle.

3)Que as pessoas ficam vulneráveis e desorientadas diante da perda, portanto podemos também nos dar o direito ao “colo”, ao carinho dos amigos e ao pedido de ajuda que muitas vezes evitamos fazer porque temos que ser fortes.

A vulnerabilidade, a fragilidade e a grandeza quase indizível da saudade também nos habitam quando a morte chega à nossa casa.

Podemos até usar alguns recursos de negação ou de fuga, mas sabemos da ineficácia destes e do ônus que eles acarretam. Portanto, nada resta a fazer a não ser chorar por nossos entes queridos, viver a saudade deixada e expressar tudo que sentimos aflorar até que possamos reconstruir a relação que tínhamos do lado de fora para o lado de dentro, e aprender que essa relação não é mais concreta. Esse é sem dúvida, um dos maiores trabalhos psicológicos a que um ser humano tem que se haver em algum período de sua existência.

Schopenhauer, filósofo alemão, dizia que sofremos porque nos apegamos a alguém e que o remédio para essa dor seria não ligarmos a ninguém. Talvez ele tivesse razão, mas, preferimos acreditar que, apesar da dor da perda, valeu a pena amar nossos familiares, como se não fossem morrer.

Fonte: Ana Lúcia Naletto e Lélia de Cássia Faleiros são psicólogas do Centro Maiêutica e desenvolvem trabalhos na área de luto em cemitérios, crematórios e funerárias. www.centromaieutica.com.br

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